Monday, February 26, 2007

Suite Natalina - Parte 1
Adagio


Photobucket - Video and Image HostingUm som soturno de cravo enchia, naquela manhã de dezembro, a vazia sala de música do casarão dos Priout com um ar de mistério, aumentado pela incidência parca dos raios solares como um holofote tímido às costas da musicista que parecia alheia ao cenário formado somente para ela e o suntuoso instrumento.

Cada nota parecia um visitante do passado, o som antigo e imponente fazendo fundo para a cascata dourada que eram os cabelos da menina, movendo-se displicentemente graciosos ao sabor da interpretação cheia de sensações que a Sonata para Cravo de Beethoven parecia nela provocar.

Toda aquela intensidade tinha razão de ser. Seu coração ainda estava sob a influência dos acontecimentos passados na festa de Natal do Professor de Poções, onde Selune tinha vivido algumas horas de pânico, non sense e estresse em quantidades similares à da bebidinha doce que vira e mexe alguém lhe colocava na mão e ela, obediente, ingeria. A tal coisinha colorida, como ela vergonhosamente se viu denominando o drink lá pelas tantas, fez com que tudo se transformasse num turbilhão com a estranha capacidade terapêutica de deixar todo o em torno agradavelmente em technicolor.

Agora, sentada há horas defronte ao velho cravo de seu tio Erick, pela milésima vez tentava remontar a seqüência dos fatos que culminaram no desfecho mais non sense que havia participado em sua curta vida.

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- E então, Selune? -Satanio olhava para a colega com interesse. A menina mantinha uma taça com um drink multicor em uma das mãos e observava o entorno com certa apreensão. -Ouvi dizer que o Lesmão estava querendo repetir o sucesso do concerto para juventude que ele promoveu na última reunião do clube. Soube que ele ficou realmente impressionado com você...

- Por Merlin, Satanio, nem brinque com uma coisa dessas! Aff! -em meio a um arrepio, a menina sorveu um gole generoso da bebida em sua mão, esvaziando a taça. -Agora que você acenou com essa possibilidade, vou ficar muito mais à vontade nesse lugar...

- Puxa, mas foi uma experiência tão ruim assim? Você é uma excelente musicista, que eu sei. E me disseram que o dueto com o McLoud foi tão perfeito que vocês pareciam feitos um para o outro. -ele considerou por um momento o impacto de suas palavras e continuou: inclusive musicalmente falando...

Yvaine observava a cena com intrigado interesse. "Ora vejam", pensou, "será que ele tem idéia da pertinência do comentário que acabou de fazer?" Mas ela sabia que o cobra amarela jamais dava ponto sem nó. Olhou para seu acompanhante que sustentava um ar de inocente travessura, e dele para a jovem cujo rosto tinha mudado de uma primeira ausência de cor para um rosa-avermelhado intenso.

- Muito obrigada, Sat, eu realmente fico lisonjeada. Agora, sobre outro comentário nada mais distante da verdade. Inclusive musicalmente falando. -Selune tinha a plena certeza de que suas bochechas deveriam parecer dois potes de geléia de cereja vistos de uma perspectiva aérea. - Mas algo me intriga, Monsieur Goddriac: você andou fazendo eco às idéias do McLaggen ou copiou esse modo casamenteiro do Slughorn mesmo?

Selune se surpreendeu ao perceber que não só a voz irônica que ouvira pronunciando essa frase era sua como a sentença vinha acompanhada de uma firmeza marota enquanto sustentava um olhar de seu interlocutor. Olhou para o brilho psicodélico que refulgia da taça em sua mão, outra vez cheia como se alguém houvesse lançado um feitiço de reabastecimento infinito. Pela primeira vez considerou se aquela "coisinha coloridinha" era mesmo somente um coquetel de frutas não alcoólico como a menina quartanista que a servira havia dito.

- Ei! Ofende mas não humilha, loirinha! -Satanio estava achando aquilo tudo o máximo. Jamais conhecera essa porção da francesinha, sempre muito delicada e frágil. Tinha que dar corda e extrair o melhor dessa mistura explosiva de sarcasmo francês e britânico regada a coquetel furtacor. -No mais, você deve saber que essa é uma teoria altamente difundida depois do dueto, justamente porque a harmonia que vocês emanavam só é vista em pessoas que têm anos de parceria na estrada ou uma união transcendental no cosmo.

- Há-há-há... Tudo bem, sua versão pândega de Professora Sibila, vou anotar a previsão. Lembre-me de perguntar ao McCloud se ele é de Touro com ascendente em Escorpião... Não que fosse fazer alguma diferença para ele...

- Não que me deixe em esfuziante alegria admitir isso... -Yvaine decidiu ser uma boa hora para entrar na conversa, já que estavam falando de seu amigo e, ora essa, ela também queria sondar mais a fundo essa história que estava cheirando a roteiro de história de Jane Austen -... mas o Goddriac tem certa razão. O próprio Tristan admitiu que o dueto de vocês foi algo "peculiar". Pode não parecer muito, mas acredite, em linguagem mccloudiana quer dizer algo.

- Vai ver ele não gostou de dividir os holofotes com um grupo de mexeriqueiros fúteis. Não me surpreenderia se peculiar significasse "pateticamente enfadonho" em linguagem mccloudiana... -ao constatar que havia expresso sua opinião de maneira tão contundente, Selune olhou para sua taça e tentou se lembrar quanto daquele líquido deliciosamente doce havia ingerido. Como não lembrasse, deu mais um gole e esperou pela resposta afiada que viria a seguir.

- Parece que você não gosta muito de falar sobre essa festa das celebridades do futuro, sobre o dueto e sobre o Senhor McCloud. -disse Satanio, sorrindo, como sempre.

- Não tenho porque gostar, na verdade. Uma festa onde as pessoas falam de si mesmas com ares de grande importância, e quando não se preocupam em unir famílias puro-sangue como se fossem criadores de pégasus de raça, calam-se torcendo o nariz com cara de "eu sou bom demais para estar aqui".

Yvaine, que na época em que curtia uma paixonite por Herman -parecia ter sido há séculos de hoje... - nutria uma certa antipatia pela loirinha, não pôde evitar admiração que a garota lhe inspirava agora. Além de deixar bem claro que não gostava da bajulação cerrada de Slughorn, também parecia abominar as conversas de alcova high society, onde tudo o que um jovem solteiro de uma boa posição social parece necessitar é de um bom enlace matrimonial, em geral orquestrado de acordo com tamanho do sobrenome. Mas naquela conversa toda, uma coisa estava fora de lugar, e ela precisava colocar nos eixos.

- Bom, já que meu amigo Tristan definitivamente não se encaixa no primeiro grupo por ter alergia desse tipo de comportamento -observou Lancaster -imagino que você o veja como parte do time dos presunçosos.

- Você há de convir que ele não se esforça muito em ser o mais sociável dos homens. Fica sempre com uma cara de profundo tédio, como se fosse uma obrigação conviver com pessoas menos cultas, menos inteligentes ou menos o que seja que ele.

- O.K., eu admito que ele não se preocupa em ser gentil quando não está a fim. Ou a conversar com outras pessoas somente por educação. Ou fazer social para não parecer rude. O engraçado é que, se ele se comporta desse jeito meio blasé é porque concorda com tudo o que você disse. Inclusive a parte de que unir sobrenomes de origem puro-sangue lembra mais a eqüinos alados que gente.

- Verdade? -Selune se espantou.

- Sim, ele realmente morre de preguiça dessas coisas aristocráticas, e evita o máximo que pode ter que fazer parte delas.

- Não, isso aí ele deixa bem claro. -Selune deu um outro gole no seu coquetel. -Queria saber se é verdade que você e o McCloud são assim tão próximos. Você parece conhecê-lo bastante.

Satanio e Yvaine trocaram olhares significativos de quem está enxergando algo que ninguém mais é capaz de ver. Mas foi o sonserino que quebrou o silêncio e, malicioso como um diabrete, disse:

- A Yvaine aqui é muito próxima, quase colada ao McCloud.Tanto que até já conhece a família toda...

- Somos amigos desde o primeiro ano, daí a proximidade. -corrigiu a setimanista -E foi por isso que a família dele me convidou para um jantar beneficente que promoveram há alguns anos, em prol de um abrigo para crianças bruxas órfãs mantida pelos pais e tios de Tristan. Foi lá também que conheci a Sr.a Mildred du Lac.

- Você conheceu a tia Mildred?! E... e por acaso não chegou a conversar com ela, chegou? -Selune ficou apreensiva. Apesar do formalismo e da etiqueta esmerada, sua tia-avó não era má pessoa, e a menina a sabia incapaz de fazer qualquer coisa que a ferisse ou prejudicasse; muito antes pelo contrário, iria fazer o que estivesse a seu alcance para que ela fosse muito feliz. O problema, entretanto, era que na atual idade em que a jovem herdeira dos Mont-Blanc Priout se encontrava, o que Mildred julgava ser importante para a felicidade era um bem ajambrado casamento.

- Na verdade eu não.

Selune não chegou a suspirar de alívio com a resposta de Yvaine porque logo em seguida ela emendava:

- Mas o Tristan sim.

- Sacre bleu... E o que... Mon Dieu, eu tenho até medo de perguntar... -a menina largou-se num pufe próximo, o rosto escondido com uma das mãos.

- Bem, como você deve saber, ela e a senhora Gèneviève McCloud são grandes amigas. E ficaram conversando por horas sobre o assunto favorito delas: você e Tristan, respectivamente. E, pelo o que Tristan me contou, quando ele chegou para cumprimentá-las, o assunto passou a ser vocês conjuntamente...


- Ótimo! Excelent! Agora eu sei sobre o que bruxos refinados fazem no intercurso das comemorações de suas causas nobres: tramam casamentos arranjados nas costas dos envolvidos. -sorriu sarcastimacemte - Coisa realmente tocante. Agora o jovem herdeiro dos McCloud vai ter certeza que eu sou igualzinha às celebridades queridinhas ocas de Slurgh. Mas... que... Mèrd!

- Legal! Você também tem momentos de fúria! E xinga! Viu, Yvaine? Nobres, porém humanos! Devia se lembrar disso ao lidar comigo...

- Satanio...! Ah, esquece... -o garoto fez uma cara de menor abandonado tão genuína que desarmou a bronca que a grifinória de cabelos lilases lhe daria. Ela sentou-se ao lado de Selune, consoladora -Olha, desculpe a intromissão, mas já que você começou a desabafar conosco... por que você se importa tanto com o que McCloud pensa?

Selune piscou algumas vezes, considerando a pergunta. Por que se importava tanto com o que McCloud pensava? Fechou os olhos com força, tentando espantar a imagem que se passava como um filme na sua cabeça: Tia Mildred e Tia Gènèvieve num púlpito discursando para Tristan, que olhava para ela, Selune, com o mesmo ar de reprovação que ele olhara para os membros do Slughclub.

- Porque isso é... Isso seria... Ah... -a loirinha fez um gesto largo, como quem não se importa mais - eu sei que todos me vêem como alguém prestes a se partir, aérea, quase ingênua, que não consegue tomar as principais decisões sobre a própria vida. E eu sei a culpa disso é toda minha, porque nunca me esforcei para provar o contrário. E essa coisa de minha tia ficar me arrumando casamentos só corrobora a tese...-a menina suspirou, de um jeito resignado. -Além disso, eu sei que o que ele pensa sobre essas idiotices aristocráticas é bem parecido com o que eu mesma penso, ele expôs de forma bastante contundente na festa do professor. Então, é como se eu me transformasse naquilo que eu mais abomino na vida e fosse julgada por uma versão masculina de meu próprio olhar. E justo qual versão masculina...

Yvaine acompanhava o raciocínio, tocada pela honestidade com que Selune lhe abria o coração. Mas eles não estavam sozinhos, aquilo era uma festa e ela poderia estar se expondo demais.

- Ei, eu entendo. E sinto muito. Mas... hm... você está contando isso para uma desconhecida... e numa festa cheia de abutres com sede de notícias quentes, e você sendo para eles quase uma princesa de cristal, seria um prato cheio.

- Talvez seja porque tem o mesmo nome da minha avó materna, mas eu confio em você. Um petit secret: sempre quis ter esse espírrito livre, despojado, autêntico como toi. Agora tenho um motivo para me aproximar, pobre de você que tenha sido logo com um desabafo! -Selune sorriu e apertou de leve o braço de Yvaine, em sinal de agradecimento. -Sobrre os abutrres... passou da horra de saberem que a princesa franco-inglesa de cristal xinga, tem dias de fúria e, vou confessar: tem TPM e até mesmo vai ao banheiro!

- Bem, é mesmo difícil separarem a imagem da casca do interior da pessoa. Todo mundo pensa que eu sou só uma maluca modernosa de cabelo lilás. E não é verdade. Quer dizer, não é TODA a verdade.

Yvaine não se conteve e juntas caíram na gargalhada. Selune estava longe de ser a princesa intocável que imaginara, sempre polida, calma e cheirosa. Era só uma garota cujo maior desejo era ser dona de seu próprio desejo, ser senhora de sua própria vida. Como ela mesma.

- Sabe, você tem muito em comum com a Èowyn. Você não quer esperar no castelo, quer ir mesmo é para o campo de batalha, se possível lutar com um Nazgûl e conquistar seu grande amor pelos próprios méritos, não é verdade?

- Se Nazgûl for aquela mistura de bicho alado e reis malvados que queriam o anel e o amor for alguém como o Faramir, é exatamente isso!

- Ótimo! Você é das minhas! E já que demos que o primeiro passo para aproximar a ex-modernosa lilás ex-princesa de cristal, me conte uma coisa: porque o pobre do Tristan foi eleito o alvo convergente de sua questão existencial? Só porque ele é bonitão, rico, culto, invulgarmente inteligente e avesso a high society e sabe disso?

- Acho que é agora que você diz que ele é perfeito. -a voz de Satanio pretendia-se brincalhona e despretensiosa, mas uma leve pontada de ciúme acabou escapando sem que ele se apercebesse disso.

- Não na opinião da Selune, que acha que o orgulho que ele tem em saber disso atrapalha a boa colocação dele no ranking dos homens perfeitos. -Yvaine decidiu provocar o loiro não se incluindo na exceção, o que pareceu funcionar. Com os braços cruzados sobre o peito, Satanio replicou:

- Da forma como você o descreve, cheio de qualidade, ele quase tem o direito de ser orgulhoso.

- Você tem toda a razão no que diz -disse Selune -, e eu seria a primeira a fechar os olhos ao seu orgulho, se ele não tivesse ferido o meu me olhando como se eu fosse mais uma das celebridades do Professor Morsa.

- Não acredito! -Yvaine estava boquiaberta -Você leu "Orgulho e Preconceito" da Jane Austen?

- Claro! Meu primo Phillippe me indicou porque achava a minha cara. Não acredito que você decorrrou algumas falas aussi!

- E eu não acredito no que estou ouvindo! Vocês têm certeza de nunca terem se falado, combinado respostas, ou qualquer coisa assim? -o rosto de Satanio estava congelado numa expressão de confusão, ou medo, ou susto ou todas as emoções juntas. -Nunca em minha curta vida vi duas pessoas tão parecidas e tão... diferentes!

- Mulheres são como unicórnios, fantásticas, simples e extremamente complexas... Por isso sempre ficamos tão confusos e ainda assim, absolutamente entregues. -Lucien emergiu na conversa vindo do fabuloso mundo do lado de fora.

- É exatamente isso! Você descobriu o Lumos, Von Weizzelberg! Escreve um livro que eu me encarrego de fazer os galeões se multiplicarem!

- Acho que teremos de tratar de negócios mais tarde. Eu só vim aqui avisar a Sel que os principais tópicos da conversa estão vindo até aqui. Está na minha hora de tentar resolver minha parcela de confusão e me declarar para sempre entregue. Se me dão licença... -retirou-se, tão misteriosamente como tinha entrado na conversa.

- O Lucien sabe das coisas. Mulheres variam no recheio, Cobra Amarela, mas o que elas mais desejam é bastante parecido em termos de essência. Pelo menos nas mulheres que valem a pena. -Yvaine piscou um olho, como quem dá uma dica muito importante.

Satanio apenas sorriu de modo quase enigmático, mas compreendendo perfeitamente a indireta de sua acompanhante.

- Acho que vocês deveriam ir. - Selune soltou, repentinamente.

- Ué, Ex-Princesa, nem bem me conheceu já está dispensando? Achei que queria se aproximar? -o sorriso de Yvaine deixava bem claro que ela não estava brava. Antes, estava se divertindo de verdade.

- Não me entenda mal. É que me parece que vamos começar mais uma edição da coluna social "matrimônios bruxos".

Yvaine seguiu a linha do olhar de Selune e percebeu, não muito distante dali e se aproximando, a senhora Mildred e o Professor Slughorn, acompanhado de uma casal que ela conhecia bem das páginas das revistas bruxas.

- Ei, aqueles ali não são a Madeleine Sinn e seu noivo, o tal conde...

- Jarno. Jarno di Camposanto.

Foi ali que Selune teve a certeza de que a noite estava apenas começando...

CONTINUA...

Por: Selune
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* Adagio: andamento musical vagaroso.

Imagem tirada do site: http://www.niagaraartcollection.com/musician-picture.htm

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