Sunday, June 11, 2006

Suíte Natalina – Parte 3: Andante*


A jovem Mont-Blanc Priout teve certa dificuldade em convencer os colegas a fugirem dali e salvar o resto de sua noite. Satânio bem que gostaria de ver o “circo dos casórios” como apelidara a ‘reunião dentro da reunião’ do Morsa Verde, mas Yvaine com muito jeito o convencera a atender o pedido de Selune.

Herman sequer havia trocado mais do que um cumprimento, quem dirá participar da conversa, já havia se retirado em algum momento antes do casal grifinória-sonserino e pouco depois de Lucien, de modo que a loira já se encontrava sozinha quando o grupo composto por Slughorne, Jarno di Camposanto e Maddie Sinn, a Tia da menina, Mildred Priout du-Lac e Tristan McCloud a alcançou.

O que Selune Priout não sabia, não poderia saber, era da trama cuidadosamente tecida pelo charmoso Jarno di Camposanto para finalmente concretizar o que havia começado em Chamonix meses antes. O minucioso trabalho desta noite envolvia algumas artimanhas não muito louváveis para deixá-la tão acessível quanto fosse necessário, uma vez que a moça era arisca como um hipocampo** e escapara de suas investidas vezes demais na nobre opinião do conde italiano.

A essa altura, ele esperava, o “coquetel de frutas” que criara especialmente para a piccola principessa há muito já lhe teria sido entregue pela jovem quartanista cuja mão ele beijara logo ao entrar na festa. Obviamente ele não deixaria todo o trabalho para uma bebida sendo tão talentoso em enredar suas presas - a coisa toda ficaria pateticamente fácil e seria uma subestimação humilhante para alguém como ele, que sempre conseguia por méritos próprios tudo e todos que desejasse.

Mas como galanteador competente que era, Jarno sabia que algumas conquistas careciam de um cenário mais convidativo e maior cuidado com os detalhes da teia em que se pretende envolver a presa. Em geral, esses eram os feitos mais memoráveis, os que ele guardava para deliciar os ouvidos de sua cúmplice e amante escolhida, Maddie. E o que seria mais inspirador para uma jovem cujo nome evocava a deusa romana Selene, senhora da noite, a madrinha e alcoviteira preferida dos amantes?

La luna è l'orgoglio e la lussuria degli innamoratti”, dissera ele a Maddie com deliciado sarcasmo. “Questa notte a piccola principessa será encantada por una luna che non vola nel cielo, ma che è igualmente celestial: La Luna Oscura para a figlia della luna”.

- Boa noite a todos. – tão logo chegaram Selune executou com tanta desenvoltura e delicadeza o cumprimento tradicionalíssimo que sua tia-avó lhe ensinara que Mildred sequer precisou corrigi-la com o olhar, como fazia quando em público.

- Boa noite, minha bela jovem! Veja que grupo interessante eu trouxe para lhe ver! – para variar, o professor de Poções estava extasiado com seu feito – Não é fascinante? Reunir pessoas de duas gerações igualmente nobres, a sabedoria dos mais experientes e jovens tão belos quanto promissores.

- Realmente, professor, o senhor conseguiu reunir aqui um grupo sui generis. – Selune sorria e seu rosto não traía um milímetro do sarcasmo com que pronunciara aquelas palavras. Delicada, tornou o rosto para sua tia-avó e com um leve meneio de cabeça, a cumprimentou. – Que bom vê-la aqui na escola esta noite, Tia Mildred.

- Estou igualmente grata em vê-la assim radiante, minha querida. Sua mãe e sua avó não puderam vir, mas mandaram lembranças. – Mildred a abraçou e ela realmente pôde sentir o calor reconfortante do abraço de sua avó e o cheiro bom e protetor de sua mãe. Mulheres extraordinárias, magia antiga e o mundo novamente parecia um lugar seguro e bom. A senhora afastou-se um pouco para o lado de modo a fazer com que um jovem sério e de porte elegante aparecesse – Imagino que se lembre do jovem herdeiro dos McCloud, Tristan.

- Encantado em revê-la, Senhorita.

Selune observou o rapaz com atenção enquanto ele tomava sua mão e nela pousava um beijo suave. Estava ainda mais bonito de que quando o vira pela última vez. Um leve rubor acometeu sua face e a languidez que percorreu seu corpo em seguida por pouco a fez se esquecer de corresponder o cumprimento.

Jarno olhou intrigado para a cena, percebendo tudo o que era dito nas entrelinhas do silêncio, numa conversa não-verbal: a estática que rodeava aqueles dois era palpável, ao menos para ele, um perito em questões de sedução, e possivelmente para Maddie, que sorria felinamente a seu lado. Percebendo que se não fosse rápido o bastante perderia o efeito del’La Luna Oscura para algo que nem de longe parecia carecer de artifícios inebriantes, moveu-se discretamente para entrar no campo de visão do stafermo verde, que não demoraria ou a tomar a rédea das atenções para si:

- Sim, sim! É realmente encantador esse reencontro familiar e de... duas famílias tão nobres! E por falar em nobreza... – numa pausa dramática de quem anuncia que a atração principal ainda está por vir, Slughorne puxou Jarno para junto de si e, como um cicerone, apresentou – Imagino que já deva ter ouvido falar do Conde Jarno Massimo di Camposanto?

- Bella signorina Selune, é veramente um imenso piacere revê-la. –o rosto do conde exprimia um ar de maldoso encanto – Se me permite a ousadia, a signora Priout du-Lac foi modesta em dizê-la radiante. É magnifica! – Jarno inclinou-se quase em câmera lenta e beijou sua mão com suavidade, sem deixar de mirá-la nos olhos para que ela pudesse perceber o desejo crepitando no fundo de seus orbes castanhos.

Selune perdeu-se naqueles olhos por breves segundos e nesse intervalo todo o entorno simplesmente desapareceu. Nos aposentos de Slughorne não havia ninguém além dos dois, o toque gentil daquela mão forte que quase engolia sua mão pequenina, o suave roçar dos cabelos dele em seu braço nu e o universo inteiro a orbitar no olhar desse homem. Sentia-se inteira anestesiada, como se houvessem injetado alívio e bem estar liquefeitos em suas veias, que lhe provocava arrepios a cada giro por seu sistema circulatório. Era a mulher mais invencível e mais frágil do mundo inteiro, e os braços dele eram descanso do herói e a proteção da donzela, e ela iria mergulhar ali e para sempre se quedar junto dele. Sorriu debilmente, retribuindo o olhar que Jarno lhe lançava em igual intensidade e maior urgência.

- Estou igualmente fascinada em revê-lo, signore Jarno. A vida nos foi muito cruel, porquanto se passou tempo demais desde que nos encontramos pela última vez.

Jarno sorriu, satisfeito. Como esperado, La Luna Oscura cumprira sua incumbência e a volúvel fortuna parecia ter finalmente decidido mudar de lado.

Tristan, por sua vez, olhava intrigado a cena: um conde comprometido se insinuando para uma Selune surpreendentemente receptiva, e ainda por cima mais aérea que de costume.

- Oh, então vocês já se conhecem? Que coisa realmente adorável! - Slughorne tratou de atrair os olhares para quem de direito: o anfitrião da festa, ele – Então a mocinha certamente conhece a belissima Madeleine Sinn, noiva de nosso galantuomo? Feitos uma para o outro, não concorda?

Selune sorriu gentilmente em cumprimento a figura deslumbrante à sua frente, mas estava confusa. Não era para essa mulher estar ali, tampouco ser noiva do conde italiano. Naquela sala, no mundo inteiro, só existia um casal feito um para o outro: ela, Selune, e Jarno. Ou não? Ela sempre soubera que Jarno era noivo daquela mulher deslumbrante que era Maddie Sinn e eles, de fato, eram como esculpidos para compor um par. Ele pertencia a outra e isso... era... errado.

Sentiu-se zonza por um instante e cambaleou; quando pensou que iria dar com o abraço frio do assoalho, sentiu braços masculinos envolvendo-a numa segurança quente e convidativa. Espalmou as mãos contra o peito que ela sabia, ela sentia pertencer a Jarno, e o contato novamente fê-la experimentar a sensação de abandono delicioso de minutos antes. Quando ergueu o rosto, sua boca a poucos centímetros da dele, percebeu que os olhos castanhos pareciam desnudá-la, expô-la de dentro pra fora, seus sentimentos, sua confusão, suas tristezas e dores mais íntimas.

Ela nunca permitira que ninguém adentrasse esse território tão perigoso que era sua alma, nunca deixara sequer sua mãe saber de toda ira inconfessa que nutria pela morte precoce do pai. Não! Ele não poderia conhecê-la tão a fundo, ou a desprezaria, ainda mais ele, tão belo, nobre, tão... comprometido com outra mulher milhares de vezes mais interessante que ela.

- Não! – sua voz saíra quase num sussurro abafado, tamanho o esforço que Selune empreendera a convencer a si mesma que, que embora ela não soubesse exatamente o que, algo estava errado.

- Não o que, carissima? - Jarno respondeu, disfarçando muito bem o profundo aborrecimento em percebê-la escapando-lhe pelos dedos quando estava já quase entregue. A intromissão daquela morsa verde patética certamente havia alertado a menina para alguma moral pequeno burguesa a respeito de fidelidade, pessoas comprometidas ou outro imbroglio do tipo. – Calma, vai passar. Sente-se um pouco aqui. Isso... Il insegnante tem muitos amigos e o lugar está cheio. Credo che tu sei un pò zonza com tanto calor humano, non è vero, cara mia? - disse em meio a um sorriso simpático, os dedos segurando o queixo da menina de forma a manter os olhos fixos aos dela.

Selune não fazia idéia do que estava acontecendo, mas ao olhar nos olhos castanhos do italiano limitou-se a um aceno afirmativo de cabeça. Se ele estava dizendo, devia ser. Ele a protegia, tudo ia acabar bem.

- Oh, meu caro, o signore pode estar certo. – Slughorne estava radiante com o comentário do conde – Realmente toda a movimentação de tantos amigos meus presentes pode deixar as pessoas um pouco zonzas.

- Foi um mal estar passageiro, eu só... preciso ficar sentada... aqui, quietinha um minuto, só isso...

Definitivamente Tristan estava estranhando a atitude da menina que sempre soubera ser, no mínimo extrovertida e, algumas vezes, como ele próprio pudera atestar, um tanto quanto atrevida. No entanto ela se portava como uma gatinha adestrada, lânguida nos braços daquele homem que claramente estava tentando seduzi-la com uma conversa rouca ao pé do ouvido diante da própria noiva. Será que havia sido enfeitiçada?

- Minha querida, isso aqui é seu? – Mildred erguera a taça de Selune na altura dos olhos, observando o rodopiar suspeito do líquido furtacor.

- Essa coisinha colorida? É meu sim. – Selune acompanhava o girar do drink com os olhos e pressentia a possibilidade de uma bronca logo adiante. – Não precisa se preocupar, titia. É uma bebida não alcoólica, foi uma quartanista quem trouxe para mim.

- Seria bom se ela bebesse algo, chi lo sa um pouco desse drink, já que é non alcóolico? – Jarno interveio.

- Discordo. Acho prudente ela coma algo, já que passou a noite toda sem colocar nada na boca além dessa bebida. – afirmou Tristan, entre preocupado e desafiador.

Jarno fechou os olhos, tentando angariar no fundo de seu ser paciência para lidar com tantos intrometidos. Decidiu que deveria afastar aquela camorra de algum modo antes que interferissem em seus planos. Felizmente aquele pasticcio de homem chamado McCloud acabara de providenciar para o conde um jeito eficaz de se livrar dele.

- Corretto, ragazzo, corretto.. – seu rosto era a perfeita justificativa de porque era tão querido no mainstream bruxo – Credo che il insegnante Slughorne pode instruí-lo quanto a quem pedir por um lanche mais leve per lei.

- Creio que devamos também afastá-la do burburinho da festa. – Maddie tocou o braço do professor de Poções e tomou a dianteira da conversa antes que alguém pudesse apresentar oposição.– Será que não haveria um local mais arejado e reservado, Professor, para onde possamos encaminhar a criança? Lá ela poderá recuperar-se sem pressa, e se alimentar devidamente.
- Oh, sim. Logo ao fundo, próximo à escada há um quarto de estudos, com um divã grande e uma janela ainda maior. Sabe, gosto de preparar minhas aulas com conforto, olhando uma bela paisagem. Podemos ir todos até lá, é bom que ficam conhecendo meu pequeno refúgio...

- Não creio que seja necessário, professor. Basta apontar o caminho que Jarno a levará sem problemas. Penso que quanto mais pessoas houver, mais tardará a recuperação de nossa bela criança. - Maddie interrompeu com simpática energia. Seu amado estava muito próximo de conseguir seu intento. A presença de qualquer pessoa lá que não o caçador e a presa só iria atrasar o processo e, conseqüentemente, a comemoração dela e de seu diavolino mais tarde. – Além do mais, seria deselegante de nossa parte continuar monopolizando a atenção do nosso anfitrião, por mais querido que ele nos seja. Estou certa de que os outros convidados anseiam um pedacinho de sua atenção. E se bem me recordo, o professor disse que havia uma jovem modelo em ascensão que gostaria de apresentar a mim e à Senhora Priout du-Lac.

- Ah! É verdade! Melinda Dashwood! Sim! Eu conversei com ela mais cedo e pensei que seria excelente que vocês a conhecessem. Um talento promissor!

- Não estou certa de que deva ir. – Mildred olhava para a sobrinha, que, apesar de ligeiramente abatida, parecia estar sendo bem cuidada pelo jovem Camposanto. Muito bem cuidada, por sinal. - Selune acabou de ter um mal estar...

- Não se preocupe, cara Mildred! Eu creio que ela estará em ótimas mãos até o jovem McCloud voltar com o lanche que mandarei preparar. Ah, pobre menina, frágil como um pequeno pomorim***!

- Eu... eu não sou frágil! – apesar de baixa, a voz de Selune era firme e seu olhar ao encarar o professor não deixava dúvidas quanto à veracidade do que dizia. Ela olhou para tia e em seguida para Jarno, que comprimia seu corpo de leve contra o dele. – Não se preocupe, titia. Eu vou ficar bem, não é, signore?

- Si, piccola strega, claro que vai. Você consegue andar?

- Acho... que sim. – Selune levantou-se, como a checar a firmeza de suas pernas – É, posso sim.

- Ótimo! – Slughorne bateu as mãos, radiante. – Vocês dois podem ir para lá, quarto de estudos, próximo à escada. E você, nobre jovem, meu caro McCloud – você realmente saiu aos modos prestativos e cavalheirescos de sua família, hein? Venha que eu já lhe digo onde encontrar o elfo responsável pelo buffet. Quanto as duas damas... – o professor de Poções dobrou os braços e esperou por alguns segundos que as duas mulheres aceitassem; nesse ínterim, ficou parecendo uma rechonchuda morsa verde com as barbatanas abertas em regateira pose.

Enquanto se afastava com o trio, Tristan olhava discretamente para trás, seguindo Selune com os olhos. O conde não o convencera de forma alguma com aquela máscara de noblesse oblige resignada e caridosa. Havia uma intenção muito clara por trás daquele olhar gentil, e ele sabia que não era algo fraternal.

Não muito tempo depois, pode atestar que não estava errado. Tudo transcorria como um filme mudo, mas ao jovem setimanista parecia fácil adivinhar todo o roteiro: a poucos metros da entrada da sala de estudos pode perceber o olhar fixo do conde em um elfo que vinha ligeiro perpendicularmente à jovem Priout, numa destreza que daria ao pequeno tempo de sobra para cruzar-lhe o caminho umas duas vezes antes que ela chegasse no ponto de convergência das trajetórias.

Segundos depois, entretanto, o elfo pareceu tropeçar num pé invisível e veio aos solavancos cair bem diante da menina ainda sob o olhar penetrante de Jarno. Assutada, Selune jogou o peso do corpo para o lado de forma a não atropelar o pobre criado, e cairia desajeitadamente sobre o pé se mais que depressa o conde não houvesse aparado sua queda com um braço. Numa típica jogada exibicionista, com o braço livre ajudou o elfo a se levantar e, com um afago na cabeça redonda tranqüilizou-o, despachando-o sem mais para o fabuloso mundo da cozinha de Hogwarts.

Com o rosto contorcido num esgar de dor, Selune se apoiava no corpo de Camposanto, que pareceu achar uma boa hora para tomá-la no colo e adentrar o aposento como um príncipe valente de contos de capa-e-espada. Mas a Tristan a coisa somente adquiriu um contorno alarmante quando percebeu o que estava na mão de Jarno tão logo ele fechou a porta atrás de si: uma taça cujo conteúdo psicodélico brilhava, girando hipnoticamente.


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*Andante: Movimento musical moderado.

** Hipocampo (Hipocampus): animal comumente encontrável no mar mediterrâneo, possui a cabeça e os quartos dianteiros de cavalo e os quartos traseiros de peixe. Considerado tão difícil de domesticar como um hipogrifo, obtendo a classificação M.M XXX do Ministério da Magia (um bruxo competente pode enfrentar). Maiores informações, consulte “Animais Fantásticos e Onde Habitam”, de Newt Scamander.

*** Pomorim (Snidget): ave totalmente redonda e de bico longo e fino, muito rara e protegida por lei devido ao alto valor comercial de seus olhos (brilhantes como pedras preciosas. Foi substituída pelo pomo de ouro no Quadribol. Ver: “Animais Fantásticos e Onde Habitam”, de Newt Scamander, e “Quadribol através dos Séculos”, de Kennilworthy Whisp.

Glossário:

-“La luna è l'orgoglio e la lussuria degli innamoratti”: A lua é orgulho e a luxúria dos apaixonados.
- La Luna Oscura: A Lua Escura
- stafermo verde: Espantalho verde
- galantuomo: gentil-homem, cavalheiro;
- imbroglio: imbróglio, negócio em que o comprador leva a pior
- Il insegnante: o professor
- Credo che lei: creio que ela
- chi lo sa?: talvez?; quem sabe?
- camorra: dizia-se antigamente da associação de malfeitores do antigo reino de Nápoles, hoje se refere a qualquer associação de malfeitores (no caso de Jarno, os que querem acabar com sua conquista)
- pasticcio: imitação grosseira, coisa mal feita
-piccola strega> pequena bruxa
- noblesse oblige: A nobreza obriga: a posição social impõe certas obrigações.